sábado, dezembro 04, 2004

Anémona

Há dias assim, é desta forma que iniciarei este texto. Há dias em que me apetece só desligar o cérebro e deixar de sentir e de pensar as coisas. Há dias em que os pretensos saraus de poesia me enfastidiam, sítios onde alguns rapazes e algumas raparigas, alguns homens e algumas mulheres vão para, no fundo, o engate. Demonstram as suas capacidades de dicção, o seu à-vontade em público, meneiam a cabeça e gesticulam freneticamente, sentindo aquele texto como algo de tão belo e de tão único. No fim, há troca de números de telemóvel, e-mails, há sorrisos e apertos de mão e "eh, pá, que rapariga gira!", "meu deus, que rapaz bonito!", os números de telefone são sinceramente o âmago decadente desses encontros, "olha que eu telefono!", troca-se às vezes saliva "e leste tão bem! Era teu, o texto?" "bem, enfim, de certa forma, sim, era meu, uns rabiscos que fiz, há uns meses, no café, sabes, etc., sou uma pessoa que escreve em cafés e que..." "meu deus! Que rapaz tão giro!".
Há dias assim, em que acordamos já tão tristes e nos negam um colo, e nos dizem coisas "bem, eu de facto, sabes, concordarás que, etc., expectativas, e tal, no fundo, no fundo, o que cheira aqui é às tuas palavras e às minhas, eu estou aqui sem estar e queria tanto estar, cheira às minhas palavras e à minha pele mas, enfim, concordarás comigo, etc, eu estou noutro sítio e vá, por favor tira os auscultadores quando falo contigo, sim?" e nós a querer dizer "está tudo bem, não te preocupes, eu estou bem, é só um cisco no olho, é só o frio que faz, eu de facto compreendo que não possas que não queiras que não sejas para mim assim tão ou tanto como, enfim, concordarás comigo, tanto como eu sou para ti e por ti, etc., eu falo e penso e às vezes chego a sentir." é verdade que às vezes chego a sentir, muitas dessas vezes até uma coisa que roça a orla da demência, estamos ou não estamos aqui, interessa-te, de facto, ou não, esse tipo de coisas, porque há dias assim, em que acordamos já tão tristes e adormecemos quase a desejar não ser, ou pelo menos ser menos, já que ser isto tudo é querer as vozes desencontradas que estão sem estar, e ser sem ter os dias inteiros os olhos onde reflectir as mágoas estagnadas dos dias que são sempre ou quase sempre iguais, com raras excepções de um ou outro pássaro fúnebre que nos invada as bocas.
Há dias assim e até podes dizer que há dias assim porque eu quero, porque o meu amor é demais, é excessivo, pesa e incomoda e magoa e angustia, e com todas as coisas que peço no fundo não peço nada mas acabo por voltar a pedir tudo isso e bebo e respiro e vivo e por enquanto estou aqui a achar que um sem-número de coisas vale a pena. "Fica um pouco mais, que eu já estou quase bom, que hoje o dia doeu fundo, mas gosto ainda do mundo.", o JP é que sabe, gosto, gosto ainda do mundo, apesar de existirem dias assim, em que nada das tuas palavras se pode extraír e tratar e destilar e beber, nem das tuas palavras nem do teu corpo.

Há dias em que acordo e tenho uma raiva acumulada atrás da retina e até me dói a retina, e tudo, e sei que dias de bancos de jardim e poemas soltos junto ao lago nunca voltarão e até outros podem alegar "livra! Livra! Isto não é poesia, não é nada, pára de gastar o teu tempo, porque escreves?" e eu acho que não sei porque é que escrevo, escrevo porque sim, escrevo porque se dá que escrevo, escrevo porque de vez em quando sento-me e penso e sinto e respiro e penso outra vez e outra e volto a sentir e às vezes ouço música e digo-te coisas que à tua frente não te consigo dizer porque os teus olhos reflectem a minha face e isso agonia-me.
Há dias em que nunca se devia sair de casa, em que nunca se devia dar um sorriso a quem quer que seja. Há dias em que temos certeza das coisas mais absurdas e nesses dias damos por nós a beber whisky e gin e porto até que a manhã nos deixe saber que de facto damos importância a uma série de coisas que não nos merecem.
Tu mereces-me ainda que tantas vezes possa parecer que não e ainda que, enfim, tenho que concordar contigo, não é?, estejas sem estar e eu te seja sem te ter e até pense que me odeie sem saber muito bem o que é que isso quer dizer.
Há dias em que escrevemos coisas só para não nos esquecermos de nos dar um bocadinho de atenção, vítimas do escárnio e das agonias dos outros.