quinta-feira, junho 30, 2011

Canal Q, ou "a necessidade de irmos contra a corrente só porque sim"

Este texto já andava para ser escrito há algum tempo, mas confesso que não tenho dedicado as minhas férias à escrita, lamentavelmente, e muito menos à escrita no que aos blogs diz respeito, particularmente este blog, em concreto. Mas vai ser agora.
Existe um canal, exclusivo do meo, serviço de televisão por cabo que subscrevo, que dá pelo nome minimalista de "Q". É um canal das Produções Fictícias (PF) e, como tal, apresenta-se como um canal de humor e de estilo de vida "alternativo", ou, pelo menos, aquilo que hoje em dia vai passando como alternativo. Não é que não ache alguma piada aos formatos das PF, não é que não aprecie o tipo de humor tantas vezes deadpan e nonsense pelo qual eles se parecem reger, ou, vá, no mínimo, pela ironia e sarcasmo latentes em quase tudo o que fazem. Mas, como é sabido, tudo o que é demais (e de mais), enjoa. E as PF andam pelos meios televisivos como se fossem a única companhia a criar humor, neste momento, em Portugal. Quase tudo o que se vê é PF. Os tão acarinhados Gato Fedorento (mesmo que eu não entenda o porquê de tanto entusiasmo em torno desses cavalheiros, nunca me agradaram por aí além) são PF. O grupinho de Bruno Nogueira e João Quadros e etc. e tal é PF. Os guiões do Herman José são das PF (talvez daí a genuína perda de piada do senhor, de uns anos a esta parte? Só um palpite, digo eu, caro Herman). As PF estão, para o humor, como o Acontece estava, para a cultura em TV, há uns anos atrás. E, se alguém sequer se lembra, o fim do programa deu-se, entre outras razões, porque monopolizava tudo o que era cultura, não dando espaços e oportunidades a quaisquer outras plataformas. Claro que se poderá (e deverá) argumentar que, depois do Acontece, as coisas não melhoraram muito. É verdade. Diria mesmo que não melhoraram nada. Agora, bem vistas as coisas, nem sequer há um programa de cultura, per se, na televisão. Mas, pelo menos, sacudiu-se aquele mofo. E, sim, é provável que não haja mais ninguém disponível para fazer humor em TV e rádio e na internet, como as PF se disponibilizam e prontificam a fazer. Poder-me-ão, ainda, dizer que os tipos do GANA/CENA/Pomada Indiana/etc., se venderam às PF (João Moreira surge, diversas vezes, vestido de galináceo, na programação mais recente do Canal Q, por exemplo), e que eles eram a única alternativa verdadeira a esse gigante do humor e dos guiões que se querem humorísticos para tudo relacionado com os media. Mas, sejamos francos, a verdade é que já não há pachorra. Não há pachorra para o clã Markl, para os Salvadores Martinhas, para os pseudo-intelectuais com barba rala de quatro dias, blazers justinhos, quase cintados, com t-shirts de filmes do Tarantino ou de jogos da NES ou da Atari por baixo, sempre com um ar oh-so bichona/boiola/metrossexual-porque-está-na-moda, a repetirem as mesmas piadas vezes sem conta, a fazerem aquele tom de fim de frase de quem está envergonhado ou de quem se apercebe, conscientemente, de qualquer coisa inconsciente, como "ah, ok, se calhar isto não era para dizer", enquanto fogem com os olhos da câmara e apertam os lábios um contra o outro. E, no fundo, o pior é que são todos uma cambada de burros laureados pelos jovenzinhos deste país, que é quem consome aquilo tudo, sem reclamar, que nem se apercebem que os seus ídolos são meras cópias uns dos outros, é tudo gente a tentar ser o outro, é tudo Fernandos Alvins a tentarem ser Ruis Unas, tudo a tentar ser o Manel João Vieira e o Manel João Vieira, enfim, a ser já só uma sombra do que foi, a tentar ser sério quando brinca, a tentar brincar quando está sério, culto, a fingir que não é, e a inspirar toda uma geração de meninos com pretensões de humoristas a serem cultos quando, na verdade, não passam de uma cambada de burros que mal falar sabem.
Mas, enfim, este nem era o teor do comentário. Chamemos-lhe, apenas, uma introdução. O que me levou a ponderar escrever isto foi o programa aberrante (não tenho outra adjectivação possível), que dá pelo nome de Os Culturistas, do passado dia 13 de Junho, aniversário de Fernando Pessoa, que passou no dito Canal Q, programa da autoria de Nuno Artur Silva, director do canal e cara de uma série de programas desinteressantes, no mesmo, apresentado por ele, por Pedro Mexia, e um outro Pedro Vieira, senhor todo ele muito pseudo-culto e ainda mais pseudo-tudo-e-mais-alguma-coisa, cavalheiro que apresenta programas de literatura e cultura no mesmo canal. O convidado do programa em questão foi o poeta, tradutor, teórico, estudioso e demais classificações literário-profissionais-académicas Vasco Graça Moura. Até aqui, enfim, nada de mais, não fora o facto de desgostar dos senhores apresentadores, por anteriores passagens de zapping pelo canal 15 do meo (posição do Q na grelha), e de não achar que a poesia, quer do excelentíssimo Vasco Graça Moura, quer do ilustre Pedro Mexia, vá particularmente de encontro à minha sensibilidade estética. O problema surge no tema do programa. Ora, sobre o que escolheram falar tais digníssimos pensadores da contemporaneidade? Sobre Fernando Pessoa, nem mais. Mas, reconheçamos, sobre Fernando Pessoa sob todo um novo prisma. Talvez com dor-de-cotovelo, talvez só porque, sei lá, há para aí uns senhores professores de ensino básico e secundário e, até, quem diria!, uns senhores professores universitários e uns jovens, uns adultos, uns idosos nem sequer ligados ao estudo científico e "laboratorial" da literatura e da poesia que gostam de Fernando Pessoa, os caríssimos decidiram realizar um programa, no aniversário de um dos nossos maiores e mais geniais poetas, unica e exclusivamente, para dizer mal. Apesar de tudo, Vasco Graça Moura, espicaçado, que foi, ainda foi o único a manter o decoro, dizendo que a sua opinião sobre Pessoa era meramente individual e idiossincrática, que o poeta tem o seu valor e que o seu papel na literatura mundial é incontornável. Mas, tal era o clima de maledicência naquele estúdio, que, em pouco tempo, já até Graça Moura tinha olvidado estes argumentos, e ingressado no dizer mal só porque sim.
É verdade que o Pessoa está na moda. É verdade que, no estrangeiro, particularmente em países anglófonos, o Pessoa é dos nossos autores mais lidos e traduzidos. É verdade que muitos jovens se interessam por Pessoa por causa da sua suposta esquizofrenia, da sua loucura, dos temas de cansaço e melancolia e solidão e incapacidade e diletância física, patentes nos seus poemas mais conhecidos. Mas é também verdade que Fernando Pessoa tem uma qualidade inegável. Pode não agradar a todos, mas agrada a grande parte, pela universalidade das suas mensagens, pela intemporalidade dos seus temas. Pessoa nunca será apenas um modernista. Não sei se era louco, ou não, e, com toda a franqueza, enquanto estudioso e trabalhador da literatura, isso não me interessa. Interessa-me o seu legado, interessa-me quanto daquilo que leio, de Pessoa, me diz coisas íntimas, ao coração e à alma. Pessoa fazia da palavra e da língua o seu laboratório, e fazia-o como tão poucos, ao longo da história da humanidade, o souberam fazer. E é ridículo que uns senhores muito cultos se juntem apenas para dizer mal. Para reduzir Fernando Pessoa a umas situações ridículas, a um desespero infantil, do qual "qualquer homem adulto saberia sair". Mais ridículo, ainda, quando o programa se auto-intitula "Culturistas". Primeiro, porque, se, por "culturistas" querem fazer um jogo de palavras, rejeitam toda a cultura, toda a literatura e teoria literária, ao rejeitar assim Fernando Pessoa. Depois, porque, se, de facto, são culturistas, no sentido mais... anaeróbico do termo, deviam-se restringir ao que os culturistas sabem fazer. Que é musculação e injecções de esteróides. De literatura é que, lamento, não percebem um chavelho. Ainda para mais, quando o prezado indivíduo que apresenta as outras rubricas de "literatura" do canal alega, neste programa, que nem sequer gosta muito de ler poesia (dizendo, inclusivamente, que não tem, por hábito, ler poesia). Meu amigo, se não gostas de ler poesia, não percebo mesmo porque raio é que estás a apresentar programas de literatura. Poesia e literatura são indissociáveis. Quem gosta de literatura a sério também gosta de poesia e de teatro e de prosa. É assim que as coisas são. Ou, vá lá, podia não gostar muito de poesia. Nada obsta. Mas, por amor da santa, criar, quanto mais não fosse, o hábito de a ler, se se vai ser apresentador pseudo-literato num programa de poesia de um canal pseudo-culto para jovenzinhos em fase "do contra" das suas existências rebeldes.
Queria apenas dizer isto, no final de um texto tão mal estruturado, no qual não disse metade das coisas que tinha em mente: não digam assim mal do Pessoa num programa que tantos miúdos vêem, pode ser? O Pessoa pode ser o que seja, eu próprio já tive a minha fase mais obsessiva, como toda a gente, acho eu, que me passou, e, neste momento, acho que ainda vou gostando apenas de Álvaro de Campos, uma ou outra coisa do Alberto Caeiro, muito pouca coisa do ortónimo, quase nada do Ricardo Reis. Mas sempre muito Bernardo Soares. Sempre todo o Bernardo Soares (a discussão do semi-heterónimo fica para outro post, por agora, fiquemo-nos por isto). Pessoa passou-me um bocado, como passa a tanta gente. Mas fica sempre qualquer coisa, fica sempre muito, porque é isso que acontece com os génios. E não é porque ele está na moda e vai estando e ficando na moda que têm de ser do contra. Sejam do contra em relação ao que está na moda sem dever estar, não sejam do contra só porque sim, irracionalmente. Porque, neste país à beira-mar plantado (e de forma gradualmente assustadora só e apenas plantado, aqui, a vegetar, à espera de milagres), cada vez se lê menos, nem só poesia, mas sobretudo. Portanto, se os miúdos e os jovens agarram Pessoa e gostam, se se revêem naquilo que ele fez, se se identificam, deixem-nos ler Pessoa, deixem-nos amar a poesia, não façam estas coisas, a crucificar um poeta tão bom e tão genial, que é nosso, para os miúdos que assistem ao vosso canal, para o caso de gostarem, deixarem a poesia de lado, influenciados pelo que lhes dizem.
E, só como apontamento, mil vezes Fernando Pessoa, ortónimo, heterónimos, semi-heterónimo, do que Pedro Mexia e/ou Vasco Graça Moura. Só, assim, vá, como achegazinha. Mil vezes o Pessoa na moda, do que o humor e a alegada cultura "alternativa" de rebanhos que se vai fazendo no Canal Q e nos media, do contra só porque sim.

P.S.: no dia do aniversário da morte do Saramago, esse cavalheiro que escrevia mal que se fartava, mas que é mitificado só por receber uma porcaria de um Nobel (prémio que, quem está por dentro, sabe ser atribuído, nos últimos anos, apenas por mérito social e político, não literário), o Q fez pelo menos um programa a dizer bem do senhor laureado. Viva a congruência e a honestidade intelectual e a integridade de princípios dos energúmenos do Canal Q!!! Hooray!