HOSPITAL CURRY CABRAL
A Colien Honegger
Parecem as termas de Fellini, disse ela, a catalã
que não sabia nada dos hospitais
de Lisboa.
De facto, o chão fumava,
um vapor espesso subia-lhe pelas pernas
e acalorava os gatos.
E até um garnisé que por ali passeava em busca
das migalhas das visitas
cantou
desirmanado.
Mas era quase erótico o tom da sua voz
como a da vedeta italiana
desse filme barroco
caindo inocente da doença ambulante
levada por maqueiros gordos
e libidinosos.
As palmeiras derramavam um choro
no vento melancólico.
E ela a catalã, jovial e magra,
ia batendo palmas às aves embaraçadas,
e avançava a sorrir
pelas zonas infecto-contagiosas.
Mas não lhe era preciso aplaudir um tal cenário
de figurantes mudos e fantasmagóricos
com os seus roupões azuis
de sida
com os seus pijamas de cinza
e tuberculose.
Bastava-lhe olhar a direito ou fechar os olhos
e perguntar pelo Hotel Barcelona.
Mas ela preferiu tropeçar nos varões com soro
arrastados pelo verde do jardim
e passar rente a precipícios que deslizam deitados
à sombra da morte.
E é preciso amar e partir depressa.
Ou atordoar-se com os perigosos jogos do contágio.
Eu respiro a calma que a desgraça me oferece
entre galinhas-da-índia
a encurtar caminho
nesse antigo lugar de mulheres da vida
arrependidas.
Normalmente vou só e não me engano.
A amiga catalã é um devaneio
numa rambla de encontros tenebrosos
com outra espécie de morte.
Tantas vezes passei
e o poema não veio ao meu encontro.
Tantas vezes devorei este fumo quente e sensual
que começa por lamber-me as calças
e faz de mim um animal em erecção precoce.
Belas termas, estas, amiga tão distante,
nas tuas quimeras musicais
no teu regaço de coloridas risas de passagem.
Passa comigo e pede um copo de água
ou de cólera, como diz o brasileiro,
àquele rapaz com a morte a prazo.
A menina do filme, essa perversa inocente
Cardinale, fica-te tão bem,
diria ele,
esse jovem director de espectros
que te tira o chapéu
e deixa ver um quisto inquietante
na cabeça pelada de trapezista mortal.
Traz contigo mais música.
E passeia comigo entre pavões rubros-azuis
e corpos que rolam
sentados ou jacentes e avançam
para a saída
da vida.
Armando Silva Carvalho, Lisboas, Lisboa, Quetzal, 2000; ed. ut. O que Foi Passado a Limpo, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007; in Poemas com Cinema (org.: Frias, Joana Matos; Queirós, Luís Miguel; Martelo, Rosa Maria), Lisboa, Assírio & Alvim, 2010
NB: por favor, notem, com agrado, ou não, que Armando da Silva Carvalho provém do mesmo concelho que este vosso humilde amigo: Óbidos.
que não sabia nada dos hospitais
de Lisboa.
De facto, o chão fumava,
um vapor espesso subia-lhe pelas pernas
e acalorava os gatos.
E até um garnisé que por ali passeava em busca
das migalhas das visitas
cantou
desirmanado.
Mas era quase erótico o tom da sua voz
como a da vedeta italiana
desse filme barroco
caindo inocente da doença ambulante
levada por maqueiros gordos
e libidinosos.
As palmeiras derramavam um choro
no vento melancólico.
E ela a catalã, jovial e magra,
ia batendo palmas às aves embaraçadas,
e avançava a sorrir
pelas zonas infecto-contagiosas.
Mas não lhe era preciso aplaudir um tal cenário
de figurantes mudos e fantasmagóricos
com os seus roupões azuis
de sida
com os seus pijamas de cinza
e tuberculose.
Bastava-lhe olhar a direito ou fechar os olhos
e perguntar pelo Hotel Barcelona.
Mas ela preferiu tropeçar nos varões com soro
arrastados pelo verde do jardim
e passar rente a precipícios que deslizam deitados
à sombra da morte.
E é preciso amar e partir depressa.
Ou atordoar-se com os perigosos jogos do contágio.
Eu respiro a calma que a desgraça me oferece
entre galinhas-da-índia
a encurtar caminho
nesse antigo lugar de mulheres da vida
arrependidas.
Normalmente vou só e não me engano.
A amiga catalã é um devaneio
numa rambla de encontros tenebrosos
com outra espécie de morte.
Tantas vezes passei
e o poema não veio ao meu encontro.
Tantas vezes devorei este fumo quente e sensual
que começa por lamber-me as calças
e faz de mim um animal em erecção precoce.
Belas termas, estas, amiga tão distante,
nas tuas quimeras musicais
no teu regaço de coloridas risas de passagem.
Passa comigo e pede um copo de água
ou de cólera, como diz o brasileiro,
àquele rapaz com a morte a prazo.
A menina do filme, essa perversa inocente
Cardinale, fica-te tão bem,
diria ele,
esse jovem director de espectros
que te tira o chapéu
e deixa ver um quisto inquietante
na cabeça pelada de trapezista mortal.
Traz contigo mais música.
E passeia comigo entre pavões rubros-azuis
e corpos que rolam
sentados ou jacentes e avançam
para a saída
da vida.
Armando Silva Carvalho, Lisboas, Lisboa, Quetzal, 2000; ed. ut. O que Foi Passado a Limpo, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007; in Poemas com Cinema (org.: Frias, Joana Matos; Queirós, Luís Miguel; Martelo, Rosa Maria), Lisboa, Assírio & Alvim, 2010
NB: por favor, notem, com agrado, ou não, que Armando da Silva Carvalho provém do mesmo concelho que este vosso humilde amigo: Óbidos.