quarta-feira, junho 07, 2006

Mamã, aquele senhor espetou uma coisa colorida no Mumu!

A primeira palavra que queria incluir neste artigo é "aberração". Estava eu no meu caminho para Lisboa, para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa ("Omnis Civitas Contra se Divisa Non Stabit"), quando me deparei, perto do término da Calçada de Carriche e consequente início do Campo Grande (aquilo há-de ter outra designação, mas sejamos práticos, acho que toda a gente me entende), junto à zona do Paço do Lumiar, com uns vibrantes cartazes anunciando o regresso das Grandiosas Quintas à Praça de Touros do Campo Pequeno. Se não eram grandiosas, eram algo do género. Vi os cartazes. Vi os forcados. Vi os bandarilheiros. Vi os cavaleiros. Vi a faena e a festa brava. A festa rija. Vi a classificação de idades. Espectáculo para maiores de seis anos. Em numeral cardinal: 6.
Vá lá... miúdos de seis anos a ver aquele espectáculo aberrante de horas seguidas de homens a maltratar animais? Haverá assim tanta frustração sexual que se tenha que descarregar num animal mais viril que os homens, só para se sentirem superiores? Meus amigos, esses fatinhos justos na virilha e no rabo, com lantejoulas, pouco ou nada ajudam. Há jogos de computador bem menos violentos classificados como para maiores de 12, por amor de deus!
Quero dizer a essas pessoas, esses penteadinhos que organizam este tipo de "eventos" que estamos numa sociedade diferente daquilo que eles pensam. Sim, há, infelizmente, estrangeiros e turistas que vêm ver as touradas, sim, é verdade que, ocasionalmente, isso dá dinheiro, mas não creio que isso justifique o facto de realizarem espectáculos de tão baixo nível. Os senhores não têm nunca argumentos decentes para defender a sua causa.
Uns dizem que é tradição. Ora, se é tradição, tanto direito tinham os centro ou sul-americanos descendentes de nativos de fazer rituais em que matavam dezenas de jovens virgens em alto de pirâmides, atirando-os de seguida para dentro de fossos profundos, para que o sol continuasse a brilhar todos os dias. Se os romanos actuais quisessem tanto reavivar a tradição, apenas em prol disso mesmo, teríamos talvez Tibério renascido e novos coliseus montados em diversas partes, para que homens combatessem entre si até à morte ou satisfação da assistência. Felizmente, essas pessoas preferem manter a tradição no seu devido lugar: nos registos históricos, na passagem de testemunho oral e escrita, mais do que na perpetuação dos actos, realizando-os, físicos, concretos, reais, desenquadrados de uma forma "contemporânea" de pensar, de sentir e de agir. Ou de um mínimo bom-senso. Outros, ainda, dizem que os touros criados dentro daquelas raças típicas de tourada (os miura, particularmente) não têm mais utilidade do que essa. Permitam-me discordar. Os pequineses, cães criados pelos chineses num reinado de um imperador qualquer, também não tinham outra função que proteger os donos, num raio de acção reduzido (geralmente estavam escondidos nas mangas), de pessoas com más intenções, saltando e mordendo-as. Hoje, são uma raça generalizada que, embora ocasionalmente agressiva para com desconhecidos mal intencionados, são cães afáveis e de trato fácil. Acredito que os touros pertencentes a raças e linhagens exclusivamente dedicadas à tourada, até aos dias de hoje, se não forem educados a tratar mal os humanos e a considerá-los uma ameaça desde o dia em que nascem, até ao dia em que, invariavelmente, morrem na arena, poderão ser touros normais, que vivem vidas normais, num campo ou num estábulo, pastando e vivendo como qualquer bovino. Perdão - os touros portugueses não morrem na arena. Morrem nos bastidores, em condições higiéncias deploráveis, e a carne é depois vendida a distribuidores, para que o consumidor em geral a coma.
Temos tradições que, apesar de tudo, não magoam ninguém, não violam direitos dos animais ou das pessoas, embora, enfim, possam cometer graves ofensas visuais, estéticas, ou até sonoras (cf. ranchos folclóricos e algum fado cantado em tabernas depois de demasiados tintos, panachés ou ginjas, em geral), que não há mal nenhum em continuar a realizar. Mas, touradas, meus amigos? E abertas ao público a partir dos seis anos? Ver montes de homens francamente em superioridade frente a um animal sozinho? E não me venham com histórias de que aquele "toiro" mataria sem remorso todos os homens na arena, e que é a "inteligência" do homem contra o "poder" e a "força bruta" do "toiro"... é cobarde, é muito cobarde fazerem isso a um animal que está em visível e franca inferioridade. E aparecem em programas de televisão, com os vossos cabelos e os vossos fatinhos de tweed e as vossas camisas da Victor Emanuel e os vossos sapatinhos de ir ao figo da Giovanni Galli e os vossos bigodes, ora fartos, ora aparados em formas ridículas, e os vossos pins da bandeira monárquica na lapela, defendendo que amam e conhecem e respeitam mais os "toiros" do que os cidadãos que, no seu perfeito juízo, abominam e condenam a prática da "bonita festa de toiros". Criam-nos desde que nascem para odiar e temer as pessoas. Por amor de deus (ou Deus, maiusculado, como tantos desses senhores prefeririam, peço perdão), digam-me, a sério, que podem considerar isso amar e conhecer e respeitar os touros... educam-nos para ser uma coisa que não interessa mais a ninguém. Sim, estou consciente da vida que os touros levam em muitos matadouros. Sim, como carne, e de vaca também, e sei que um animal teve de morrer, para que eu possa comer a sua carne. Mas sei que esse animal não morreu num espectáculo deplorável de degradação humana, perante uma multidão que o vê ser chacinado, distraídos de tudo e vendo os bandarilheiros, airosos, cravando estacas coloridas no flanco dos animais indefesos - sim, indefesos, consta que inclusivamente lhes aparam os chifres, para que não colham mais seriamente algum toureiro desprevenido. Ainda por cima, com miúdos de seis anos a poderem assistir.
E isto é tradição.

4 comentários:

astrophil disse...

Vamos colocar este texto na entrada da Praça de Touros?

colher de chá disse...

muuuuuuuuuito bom, muuuuuuuuito bom mesmo. já li 2 vezes. este texto devia ser publicado! devia ter sido distribuido no dia da manif do campo Pequeno.
sinceramente, concordo com cada vírgula.

polegar disse...

ai, cada vez gosto mais deste blog...

curiosamente, num espectáculo em que se diga "porra", será classificado como para maiores de 12, e com beijos é maiores de 16...

Letras de Babel disse...

ando a ler umas coisas e cheguei aqui...

numa noite menos boa para comentários não posso deixar de dizer que sou mais anti-tourada que os do respectivo movimento (a propósito, onde é que se meteram?), embora seja duma terra de feiras taurinas (asquerosas).

e que este texto está soberbo.

(o pior, quanto a mim, é saber do entusiasmo (até se babam) e dos aplausos do público num espectáculo de sangue)