domingo, abril 13, 2008

Festival de Jazz de Valado dos Frades 08 - 12 de Abril


Eram umas oito e meia e eu estava atrasado. Tive ainda tempo de aquecer uns restos de arroz de cenoura, que tinham sobrado de há uns dois ou três dias, fritar uns croquetes à pressa, comer tudo em menos de cinco minutos e correr para o largo, onde era suposto estar há um quarto de hora. Já lá estava o Nené e íamos ainda ter de esperar pelo Ricardo - que era, no fundo, a nossa mais que requerida boleia para Valado dos Frades, local onde, anualmente, de há cerca de dez anos a esta parte, decorre aquele que é o melhor festival de jazz da região e, arrisco-me a dizê-lo, um dos melhores a nível nacional, se bem que talvez pouco divulgado.
A viagem teve os seus percalços, já que era a primeira vez que o Ricardo ia para aqueles lados e, não querendo seguir as minhas indicações, acabou por se demorar mais um bocado. Eventualmente, lá se decidiu a seguir pela autoestrada até à saída marcada com "V. dos Frades", que nos deixou à porta da dita vila (aldeia? Enfim). Seguimos em direcção ao salão da Biblioteca Instrução e Recreio (BIR), onde, nos últimos três anos, têm decorrido os espectáculos, apenas para nos depararmos com as portas fechadas. Faltavam à volta de trinta minutos para as dez horas, hora marcada para o início do concerto, e nós achávamos assaz estranho que estivesse tudo ainda tão apagado e quieto, portanto, entrámos no café ao lado (mais a tasca ao lado), que faz parte do salão, também, para perguntarmos se era ali que estava a decorrer o festival este ano. Não era. A donzela que nos atendeu largou com pouca prontidão o aparelho de televisão no qual assistia a um documentário acerca de tatuagens, dirigiu-se ao balcão e inquiriu, com cara de poucos amigos, se íamos desejar algum produto em exibição no seu estabelecimento. Sentimo-nos obrigados a consumir, e, no fim de termos adquirido, nomeadamente, um café e um pacote de amendoins cobertos, lá nos sentimos no direito moral de pedir à excelsa criatura que nos indicasse, por obséquio, se era, ou não, ali, que ia Carlos Bica dar o seu concerto de jazz. Não era, respondeu ela, prontamente. Não era ali, embora tivesse, de facto, sido, durante três anos consecutivos. O nosso pensamento uníssono deve ter sido qualquer coisa na base semântica da interjeição "bolas!", assim mesmo, exclamativa, e o mais exclamativa possível. Pronto, tudo bem. Então, onde é, este ano? E ela indicou. Era na sala da BIR, junto da praça, só uns metros mais abaixo. Vai-se bem a pé e há setas a ajudar. Porreiro. Mas as provações no café do salão da BIR não tinham acabado. Enquanto o Ricardo acabava de saborear o seu café, surge a alegação de que ali já não havia jazz, mas havia noite africana. Rimo-nos, pensando tratar-se somente de um desabafo, de uma brincadeira, de um momento de intimidade espirituosa, típica dos trabalhadores em locais como aquele. Nisto, o Nené, virando-se para trás, para ver os programas afixados no placard de corticite, puxa-me pelo braço, apontando, com ar incrédulo, para o programa de uma Noite Africana, animada musicalmente por dois DJs cujo nome não fixei, e cujo preço de admissão era de 2 Africanos e meio, sendo que as bebidas estavam a 0,80 Africanos. Pedimos ao Ricardo, encarecidamente, que se apressasse a beber o seu café, embora, antes de abandonarmos com relativa celeridade o bendito cafezinho, a sua exploradora ainda nos tenha dirigido um profundo "vocês deviam era ficar para este, que isto é que é para a vossa idade". Obrigado, mas não, obrigado. Descemos até à praça, e lá estavam as setas e as indicações preciosas "Sala da BIR - 11º Festival de Jazz Valado dos Frades". Passámos também por uns jovens de boné e fios dourados com demasiado bling, que soubémos, à partida, virem a ser frequentadores, por 2.5 Africanos, do salão da BIR, mais acima.
Pagámos os oito euros (nada de oito "jazzes", ou oito "festivais", ou oito qualquer coisa - oito EUROS), e fomo-nos sentar o mais perto da frente possível. Este ano as cadeiras e as mesas já não eram as de madeira, decrépitas, a que o festival do Valado me tem vindo a habituar e, por isso mesmo, desconfiei. O ambiente podre e gasto era uma coisa que me agradava sobremaneira, e de repente vi-me num sítio mais moderno, mais in, a apostar mais num design minimalista, e tal. Abri o preçário. Ok, design minimalista, mas, ah!, os amendoins não falham! Amendoins - €0.50. Fixe. Cerveja - €1.40 para cima, mas, como não bebo, tudo bem. Whisky, que ó que se quer: €1.50. A noite promete. Esperámos. A sala encheu. Havia pessoas na balaustrada, em cima, pessoas em pé, atrás e dos lados, as mesas cheias. De repente era como se tivessem voltado a substituir as cadeiras muito bauhaus pelas cadeiras de bar de jazz dos anos vinte sem restauro. Estava-se bem, respirava-se música, bem-estar, conforto, amizade, tudo, mas, sobretudo - jazz. As horas arrastavam-se, nós acabávamos o primeiro de três sacos de amendoins e, da banda, nada.
Deviam ser perto das onze, quando o Carlos Bica e amigos/convidados (pareceram sempre muito mais amigos, do que convidados) subiram ao palco. Afinar os instrumentos, e tal. José Salgueiro na bateria, Mário Delgado na guitarra, João Paulo Sousa no piano, órgão e acordeão, e Carlos Bica no contrabaixo. Quatro nomes preciosos do jazz (e da música, em geral) nacional juntos num palco, mesmo à nossa frente, um deles já tendo sido considerado o melhor contrabaixista de jazz do país - eu não estava em mim. O Mário Delgado grava uma malha, põe no loop e eles começam. Vem-me à cabeça uma palavra: genialidade. Aquilo não era só jazz, e com o decorrer da noite eu só viria a comprovar isso ainda mais. Eles riam-se e divertiam-se e a primeira música ainda não ia a meio. Não era só genialidade. Era algo mais. E ali na primeira fila, com dois amigos do melhor, whisky, amendoins, jazz do bom, intérpretes soberbos, em todo o lado olhares simpáticos, compreensivos, todos sentíamos o mesmo; não era só genialidade, nem perto. Era intimidade. Era isso.
Eles tocaram temas dos álbuns mais recentes e mais antigos do Carlos Bica, composições do Mário Delgado e do João Paulo Sousa, e todas as músicas, todas, da primeira à última, respiravam, transpiravam, exalavam, transmitiam, em última análise, jazz. Livre. Um jazz que era tudo. Era rock, era indie, era avant-garde, era experimental, era tango com laivos de salsa. E estar no meio daquilo, fazer parte daquela experiência foi uma coisa que me foi muito. Nunca a companhia de bons amigos me soube tão bem. Nem o whisky, nem os amendoins. É que não era por isso. Cada um dos quatro era genial no que fazia, e seria injusto destacar um, de entre os outros três. Desde as transições pizzicato para arco (e vice-versa), dos slaps e demais "invenções" no contrabaixo, por parte do Carlos Bica, passando pelas batidas ora frenéticas, ora calmas, ora dixie, ora avant-garde, do José Salgueiro, pelas técnicas, efeitos de ruído e de som, agudos e graves, tremolos, distorções e demais genialidade (eu vou repetir muitas vezes esta palavra) do Mário Delgado, a acabar na fluidez e naturalidade com que o João Paulo Sousa tocou cada um dos seus instrumentos (particularmente o acordeão, nas partes dificílimas que fez parecer tão fáceis e suaves de executar). Era tudo como devia ser sempre. Iceland, Believer, White Vivaci, Um Balão na Cama do Faquir, Roses For You, são apenas alguns dos temas de cujo nome me recordo. Qualquer um deles brutal, grande, espectacular. E esses adjectivos de apreço e de reconhecimento de uma qualidade acima da média.
Viram-se senhoras a abanarem-se freneticamente ao som de batidas, malhas e afins, que se costumam ver mais no rock do que no jazz, viram-se casais que se beijavam ao som da música, amigos que falavam, pessoas bêbedas que gritavam, do fundo da sala, "vai, Bica!, e "dá-lhe, Bica!", entre variados guinchos, gritos e manifestações vocais de reconhecimento pelo mérito dos músicos - às quais, dentro em breve, me juntei. Palmas, sempre muitas palmas, e três encores, ao que, no último, o próprio Carlos Bica alertou que não valia a pena ficarmos a bater palmas e a chamá-los, que eles precisavam de descansar a seguir.
Obviamente que a noite ainda me ofertou, extrema graciosidade do Nené ao abrir um saco de amendoins, um copo de whisky vertido sobre as calças, mas, enfim, sempre teve o seu não-sei-quê de divertido, e tal, essa parte fraterna e amável para com as minhas pernas.
Note-se que, depois do concerto, ainda fomos ao Trombone, onde o Vítor passava, precisamente, Carlos Bica, visivelmente triste por não ter podido ir. Nós relatamos a coisa. Não serve. Não é igual. Mas, eh, pá... Vítor, foi o que se arranjou. Para a próxima, apareça por lá.
E quando saímos da sala da BIR, a caminho do carro, a noite africana já tinha acabado e as pessoas da minha idade estavam todas com péssimo ar, à porta do salão, com os seus bonés e demais trajo à lá hip-hop gangsta, provavelmente desiludidos com a falta de piteuzinhos que aparecessem.

Para o ano há mais.

N.A.: na verdade, vai haver mais ainda este ano, mas este vosso prezado não deve já frequentar, em qualquer outro dos dias que ainda faltam, o festival. Portanto, no que me diz respeito, em princípio, só para o ano haverá, de facto, mais. Quanto aos da noite africana, esses devem ter mais bastante mais regularmente, por isso, não terão, também, de esperar um ano. Ok, é relativo, haver mais para o ano. Mas há. Também.

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