sábado, abril 05, 2008

No Telhado

Ela dizia que queria ser como o ar
que ele respirava: invisível, mas sem
ele K. havia de morrer. Terá medido o
alcance das despropositadas palavras
com que perturbou a paz do seu espírito?
Quem pode viver de ar apenas? À volta
de K. as árvores e as cidades, os lagos
e o rosto das pessoas. E tudo convidava
a abandonar o refúgio do ser que
em nós parece ter adormecido.
Pelas ruas íngremes das cidades
já meio esquecidas foi-se gastando
o juvenil entusiasmo com as divagações
da adolescência. Caiu a noite com o seu
terrível silêncio. Onde estás, perguntou K.
A quem se dirigia, a que fantasma? O
matracar magoado dos relógios, as gotas
de água que batiam no telhado da casa.
Continuarei a viver, disse K., mas quem,
ainda, quererá habitar a casa comigo?
Com quem partilharei o amor e o pão?


João Camilo, in O Som Atinge o Cimo das Montanhas, Entroncamento, Ovni, 2006

(Porque isto não pode ser sempre só música, vá...)

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